Texto sobre a exposição Repaisagem, de Marcelo Zocchio, na Casa da Imagem de São Paulo, 2013. Republicado na Revista do Arquivo Municipal 205 em 2014.

Text about Marcelo Zocchio's exhibition Repaisagem at Casa da Imagem de São Paulo. English version here.




Porque uma cidade
sempre contém outra
dentro de si.

Mário Quintana


A escuta do lugar

Enquanto escrevo este texto, o apartamento do vizinho passa por um processo de “modernização”, termo utilizado atualmente pelos corretores imobiliários como um sinônimo mais glamoroso de “reforma”. O choque de marretas contra as paredes e o trânsito da Avenida Angélica compõem a trilha sonora desta escrita, tornando o som dos dedos no teclado do computador mais um instrumento da grande sinfonia de carros e concreto.

O espírito renovador, acompanhado pelo apagamento do passado, não é novo nesta metrópole. Como grande parte da paisagem paulistana, o local onde se encontra a Casa da Imagem já passou por diversas mudanças. A construção que se vê hoje data de 1880. Antes disso, havia um casarão de taipa que abrigou, entre outras coisas, um hotel chamado Boa Vista, a partir do qual os hóspedes podiam “gozar-se da linda vista da várzea”, referindo-se às margens do Tamanduateí. Desde então, o rio foi retificado e silenciado. A várzea foi transformada em concreto. A boa vista encurtou-se e passou a ser uma cortina de árvores que habitam o pátio da casa, protegendo o olhar e atenuando a brutalidade com que a paisagem foi alterada.

A escuta de Marcelo Zocchio não se dirige ao ronco incessante da cidade voraz. O que o artista ouve é o silêncio de uma ausência, o vácuo deixado por um passado invisível que o faz perfurar o presente. Pesquisando imagens antigas, Zocchio indaga-se sobre o efeito escultórico do tempo em determinados locais da cidade. Utiliza-se das fotos de arquivo como se fossem mapas, onde busca o exato ponto a partir do qual as fotografias foram tiradas e ali reencena o clique original. Tal mirada é o único ponto fixo de toda essa história. É onde o artista finca a ponta seca do compasso e inicia o meticuloso desenho de sobreposição espacial e temporal apresentado em Repaisagem.

Na imagem que mostra a Avenida 9 de Julho, vista a partir do Viaduto Martinho Prado, percebem-se algumas das escolhas do artista na edição das imagens fundidas. O lado esquerdo da foto prioriza o local em 1940, clicado por Benedito Junqueira Duarte. Ali ainda encontramos a vegetação de um terreno baldio, onde um grupo de crianças joga futebol. No entanto, já é possível notar ao fundo a cidade em construção, que resultaria no espaço apertado visto no lado direito da foto, em 2012, onde predomina um paredão de prédios. É nessa parede que se vê a sombra projetada dos edifícios que estavam no outro lado da rua no momento em que a foto atual foi tirada. Ao fundir as duas imagens, resta a sombra, mas já não se tem mais o corpo que a produziu. Revela-se assim o passado daquela fotografia, e não o do lugar.

Tais curtos-circuitos temporais e espaciais minam o senso de direção e, mais profundamente, ativam um estranho sentimento de pertencimento. Estranho porque a arqueologia proposta desencava uma cidade que não deixou traços no presente, e portanto não é familiar. Assim, a noção de pertencimento não se dá em relação a uma identidade estável construída historicamente, como o termo costuma evocar. A familiaridade reside no fluxo constante, na eterna substituição do presente por um vir a ser. Desmorona-se uma ideia apaziguada de lugar, movimento precisamente cartografado pela fina escuta do artista. Tudo o que se vê aqui não é, apenas está.

Jorge Menna Barreto, maio 2013.